terça-feira, 3 de novembro de 2009

ZIRALDOOOOOOOO






                              Reminiscência









Nasci numa pequena cidade de Minas. Até aí nada demais. Muita gente nasce em cidades pequenas, distantes e quietas. Seria feliz, de qualquer maneira, se quem lê neste instante pudesse saber a alegria que existe em se nascer num lugar assim, em que as ruas pequenas e estreitas, as altas palmeiras, a água macia da chuva que cai sempre, as muitas estrelas e a lua, as pedrinhas das calçadas, a meninada, a carteira da sala de aula, a mestra e mais uma quantidade destas lembranças simples sejam, mais tarde, influências reais na vida da gente. Na vida de quem, afinal, preferiu enfrentar a cidade grande: as águas desse mar, a luz dessas lâmpadas frias, a sala fechada, triste e sem perspectivas em que se ganha a vida, a cadeira quente e insegura das tardes de ir e vir — pura fadiga — das empresas, a luta, a dura luta de ser alguém, um peixe grande em mar estranhamente grande. A verdade é que, um dia, a pensar e refletir na grama macia da pracinha da matriz, a criança decidiu sair.



E a estrada se abriu a sua frente. Vir era uma idéia. Fixa. Caminhar era fácil.



A chegada: a rua imensa, as buzinas, as luzes, sinal verde, aquela cidade grande, grande ali, na sua frente. Cada face, cada ser que passava — pra lá e pra cá — inquietamente, tanta gente, suada, apressada, sem alegria, sem alma, a alma cerrada, enrustida, cada triste surpresa era a chegada.



Cheguei. Um táxi. A mala. As esquinas. Está bem, mas, que fazer? Sentei e pensei. Pela janela da casa alta vai a vida. Seria a vida? E disse a primeira frase na cidade grande, as primeiras palavras diante da grande luta e as palavras eram: Meu Deus, que saudade! E nem um dia me separava da pracinha da matriz. Cada dia que, a seguir, vi passar, esqueci.



Diante da máquina, neste instante, há uma distância imensa entre aquele dia na missa cantada na minha igrejinha e este dia em que, diante de mim, diante de minha mulher e da minha casa feita de cidade grande, minhas filhas brincam de ser gente grande.



E elas. Que vai ser delas? Sem palmeiras, sem um pai de ar grave; sem entender a chuva a cair em jardins humildes, nas margaridas branquinhas; sem entender de lua e de estrelas — que céu aqui, pra se ver nem se vê —, sem brincar na lama das ruas, a lama das chuvas, casca de palmeira, descer as barracas, nadar sem mamãe saber, nas águas escuras, fim de quintal, quintal, quintal? sem quintal? pedrinha de calçada, marcar a canivete sua inicial na carteira da sala. Ainda bem que nasceram meninas.



Já é diferente. Será que é? Sei lá. Entre a chegada e este instante, lembrança nenhuma. Sei que cheguei.



E sei mais: que esta página está é uma grande besteira, dura de cintura, sem graça, uma m... Já se vê que quem nasceu para caratinguense nunca chega a Rubem Braga. E também tem mais: Quem é capaz de escrever uma página literária decente — igual a essa (?) — sem usar uma vez sequer a letra O? Leiam mais uma vez. Atentamente. Se tiver um — além deste aí em cima — eu como!





Ziraldo Alves Pinto nasceu em Caratinga (MG), em 1932. É um homem de múltiplas atividades: advogado, jornalista, desenhista de humor, escritor infantil, autor teatral e de cinema, empresário, confirmando o que disse em uma entrevista há muito tempo: "Eu quero é abraçar o mundo com as pernas". Um dos fundadores do jornal "O Pasquim", que fez grande sucesso nos anos da repressão, lançou a revista "BUNDAS", em 1999, que só durou alguns meses. Em 19-02-2002, sob sua liderança, "O Pasquim" voltou às bancas, numa tentativa de fazer renascer o velho sucesso. Criador de Flicts, Jeremias, o Bom, O Menino Maluquinho, O Mineirinho Come-Quieto e tantos outros mais, que fazem parte de nosso cotidiano, aqui o autor é apresentado de forma intimista e emocionada, contando, sempre com muito humor, sua saída de Minas.



O autor foi agraciado com o Prêmio Academia Brasileira de Letras, em 2003, na categoria "literatura infantil".

VINÍCIUS CASSIOLATO




                                           PERFORMANCE DA POESIA NOTALGIA
                                                             POR VINÍCIUS CASSIOLATO NA
                                                              REUNIÃO DOS RASCUNHEIROS
                                                                       DE SALTO 22/10/09






NOSTALGIA




( Vinicius Cassiolato)



Quieta, reflexiva...

Seu olhar corta as janelas atravessando a rua.

Mas não vê, nem ouve.

Apenas pensa...

O cigarro em sua mão direita,

Consuma-se sem um trago!





Apesar do conforto de sua poltrona

Do clima calmo do entardecer,

De sua casa estar arrumada,

De tudo estar em ordem,

Ela sente que algo está errado!

Mas o que?





Seus filhos estão criados

Os quadros na parede estão alinhados.

Suas roupas estão lavadas,

E o frio que chega com o entardecer, está do lado de fora.

O que será?





Seu penteado está perfeito.

Fez as unhas pela manhã

À tarde deu aula particular para alguns!

O que será?

Tem uma vida simples de fato,

Mas depois de sua aposentadoria as coisas melhoraram.

Tem sua biblioteca particular

e orgulha-se muito disso.

O que será então?





Pensa que pode ser a falta de energia no bairro.

Mas no seu íntimo sabe que não.

Como se o corpo respondesse à sua mente distante

Vagarosamente seus olhos baixam

E começam a encarar suas mãos... silêncio...

Quanto tempo ela não fazia isso?

Alguns anos.. décadas....

Ela observa cada linha,

Cada traço de sua pele.

Apaga o cigarro para melhor enxergar.






Agora vê como sua pele está esbranquiçada,

Enxerga veias, frágeis e delicadas,

Assim como todo seu corpo atual.

Apesar de suas unhas pintadas,

Está enrugada, envelhecida com o tempo...

Sem nenhum aviso,

Suas mãos viram-se

Deixando as palmas expostas.

Visualiza seus calos, já disformes.





Sentiu uma leve brisa percorrer a sala.

Junto com ela, veio a sessão de Nostalgia.

Lembrou-se do tempo que era jovem.

Nada muito além disso.

Sem rugas, sem marcas, sem filhos.

Apenas jovem.

Em busca de utopias e Revoluções.





Quantas vezes não assumiu para si os papéis de Olga, Anita, ou Clarisse?

Quantas vezes não brandiu a espada feminina?

Enfrentou e venceu seu pai, enfrentou o machismo.

Libertou e foi Liberta.

Pensou em quantos corpos aquelas mãos acariciaram.

Em quantos carinhos fez e recebeu de amantes e namorados!

Sentiu um momento de excitação extrema,

Pensou em seus momentos solitários e únicos,

Masturbando-se, tendo todo seu prazer particular.

Lembrou também de sua mais fiel amiga,

com a qual sempre mantivera relações íntimas.

Onde será que ela estará depois de tanto tempo?

Talvez em algum túmulo.... quem sabe...

De súbito, veio-lhe à memória detalhes de suas Revoluções

Sua luta contra tudo e contra todos.

Mas agora parece tão distante, longe

Enterrada em algum lugar remoto.

Mas sentiu saudades de quando

Assumia para si a voz de Olga Benário,

De quando lutava como Joana D´Arc,

Das vezes que amou as mulheres como Virgínia Woolf,

Ou de quando escrevia, assumindo Clarice Lispector.

Tanto tempo. Tanta Nostalgia.





Quando será que deixou tudo isso para trás?

Pode ser que tenha se apagado com o casamento.

Vieram os filhos.

Sentiu amor maior.

Mas apesar de sua luta ter ficado no passado,

Suas batalhas continuaram.

Casou-se por medo...

Medo...

Medo de...

Medo de morrer...

Medo de morrer sozinha...





OS filhos cresceram,

As guerras aumentaram...

RECLUSA DENTRO DE SUA CASA

PROIBIDA DE VIVER...

Sua rosa foi murchando.

Começou a envelhecer sem perceber.

Ela achou graça ter recordado disso.





Mas apesar de ter-se apagado,

Uma guerreira, sempre uma guerreira.

Ergueu-se outra vez

Com sua força,energia, magia, luz...

Libertou-se depois de décadas de repressão.

Naquele dia, via-se nela, um brilho já extinto.

Levou consigo seu único legado: os Filhos

Tanto tempo. Tanta nostalgia.

Os filhos casaram, e educam seus filhos.





E agora ela está ali.

Sentada.

Em silêncio.

Reparando depois de muito tempo, em suas mãos.

Reparando depois de tanto tempo, que ela existe.

Ela ainda ama.

Ela ainda vive.

Reparou-se, depois de anos, finalmente,

Que ela ainda era Mulher.